segunda-feira, 24 de março de 2008

PARTE 9 - I like your boots

Sempre me senti seguro em Nova York. Nunca tive medo de andar sozinho pelas ruas de Manhattan ou do Brooklyn de madrugada. Claro, tinha cautela ao entrar nos vagões do metrô. O Departamento de Polícia da cidade (PNDY) alerta para que as pessoas evitem vagões vazios durante as viagens tardias.

Numa noite calorenta de verão, depois de algumas cervejinhas num charmoso bar do Village que tinha jazz e mesinhas na rua (eu adoro jazz e mesinhas na rua!) desci as escadarias do metrô para esperar o meu parceiro de tantas jornadas: o trem R, uma das linhas que cruzam o Hudson River, de Manhattan para Bay Ridge, em Brooklyn. Com o meu walkman no bolso e as gravações da K-Rock Classic Rock and Roll Radio na fita cassete no volume 10 (sim, sou do tempo da fita cassete, sim!), esperava pacientemente pela luz no fim do túnel. Quando as portas do R se abriram, levantei do banco de três lugares da estação, corri e me joguei numa das banquetas próximas da janela do trem.

Com a coisa já em movimento, dei uma olhada para trás. Além de mim e meu walkman, ninguém no vagão. Só ali me lembrei do alerta do PDNY. Resolvi ficar mesmo assim. Se a coisa apertasse, por algum motivo, era só cruzar as portas internas que ligam os vagões uns aos outros. Percebi que no carro da frente, por exemplo, havia muita gente tagarelando. Fechei os olhos, como sempre fazia no trem, e tratei de esperar, pacientemente, ouvir o maquinista dizer: Bay Ridge, next stop. Mas bem antes da minha parada, ouvi uma voz grave e próxima.

- I like your boots, disse o cara.
Olhei para o lado e vi um gigante. Parecia o Michael Jordan. Só que gordo. Ele se sentou do lado e repetiu a frase.
- I like your boots.

Percebi de cara que ele estava sob o efeito de alguma droga pesada. Pupilas dilatadas e os olhos pra lá de arregalados me olhavam sem parar. Também percebi que ele queria roubar as minhas botas. Ou pelo menos me ameaçar de algum modo. O que tenho certeza é que meu pequeno porre passou na hora. Resolvi descontrair.

Eu: Comprei na Rua 23. Naquelas lojas US Army, que vendem artigos para caça e pesca, sabe?
Ele: Sim, sei.

Senti que seria melhor continuar uma conversa do que ignorá-lo. Então, disse a ele que também havia gostado das botas que ele estava usando. Eram daquelas do tipo que o exército americano usa no Iraque: cano alto, cor de areia e cadarços trançados.

Ele: Você deve estar brincando. Tenho essas botas há anos.
Eu: Botas velhas são ótimas. Por estarem mais acostumadas com os pés, são mais confortáveis.
Ele: Mas eu gosto de botas novas. Mas é verdade, uso bastante até ficarem velhas e mais confortáveis.
Eu: Sim, entendo.

E esse papo de bêbado para delegado seguia firme. O trem R já estava em Brooklyn, mas ainda faltavam umas três estações para eu descer. Fiquei na dúvida se deveria descer na minha estação. Senti receio de que ele poderia me seguir, sei lá. Ficamos em silêncio por alguns instantes até ouvir o auto-falante.

O maquinista: Bay Ridge, next stop.

Fiquei de pé num instinto. Coloquei minha mochila nas costas e perguntei onde ele costuma descer. Com um olhar de quem não gostou de ficar sozinho, o cara me olhou com aqueles olhos esbugalhados, de baixo para cima.

Ele (com a cabeça jogada para trás, repousada no encosto do banco de plástico do trem): Vou até Coney Island (a última e obscura estação do trem R). Depois eu volto para Manhattan. Depois retorno para Coney Island. Depois eu volto para Manhattan...

Desci apressado do trem, ainda ouvindo-o repetir o seu deprimente itinerário noturno.

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