segunda-feira, 24 de março de 2008

PARTE 8 - Pelas ruas e estradas de Nova York

Já disse que gostava de trabalhar no caminhão. Mas vou repetir: eu gostava de trabalhar no caminhão! Por uma razão bem simples: os dias eram todos diferentes uns dos outros. Chegava cedo e carregava o baú com o motorista. As peças eram colocadas na ordem de entrega, ou seja, colocávamos para dentro do caminhão as últimas entregas. E lá íamos para Manhattan, Brooklyn, The Bronx, Staten Island, Connecticut, Springfield, Union, Up State, meu Deus!, quantos lugares lindos eu conheci, quantas casas bacanas eu entrei, quantos dólares eu ganhei de gorjeta... Bons tempos aqueles. Além de curtir lugares diferentes, era uma oportunidade para conhecer ainda mais a cidade e as pessoas. Entregando móveis entrei, de fato, na casa americana. Conheci seus hábitos, a sua forma de viver e tentar entender as razões pelas quais tanta gente quer viver o american way of life. Vi apenas um pouco do estilo de vida deles, mas o suficiente para entendê-los.

Via de regra, as pessoas criticam os americanos, um pouco por sua ingenuidade, outro tanto pela eterna busca de ser o primeiro, o mais competitivo, e os Estados Unidos, principalmente pelas decisões políticas e pelo gosto desenfreado de seus governantes pela invasão de países indefesos. Eu ouço e compreendo. Às vezes concordo, mas também contesto e, de certo modo, defendo a forma de vida da população e sua visão de mundo. Por exemplo: quando termina o campeonato nacional de basebol (torço para os Yankeens, claro), o time não é campeão americano, mas mundial. É o The World Champion! Para os americanos, o mundo é o país deles. Eles são localistas. Quando perguntam para um brasileiro de onde ele é, o cara responde que é de São Paulo. Lá, quando fazem essa pergunta o sujeito responde que é do Brooklyn. Ou seja, ele não é da cidade de Nova York, mas de um bairro, de um distrito. Pode ser ruim, mas também pode ser bom. Também pode não ser nada. Não tenho a intenção de fazer a cabeça de ninguém em relação a nada.

Deixando de lado a sociologia, a antropologia e a geopolítica, o período na loja de móveis foi o mais divertido que tive em Nova York. Não apenas pela falta de rotina, mas também porque levava ótimas gorjetas e dava muitas risadas. Foi nessa fase que acumulei um punhado de histórias engraçadas. Não vou contar todas, claro. Mas não posso deixar de contar algumas.

O motorista do caminhão que eu trabalhava era um baiano. Como todos os baianos, Sérgio era um cara criativo. Músico, compositor, cantor, artista plástico e lento, tinha um pequeno estúdio em casa. Duas guitarras, amplificador, bateria eletrônica, enfim, uma parafernália que divertia a gente depois do expediente. O dia passava rápido com tanta entrega. Para negociar gorjetas melhores e estabelecer preços para pequenos favores aos clientes, como levar embora da casa do cara o sofá antigo, combinávamos que apenas um de nós falava inglês.

O cliente: Vocês poderiam levar este sofá velho embora? Não tenho lugar em casa para mantê-lo aqui.
Um de nós (em inglês): O meu colega não fala inglês. Você se importa que eu pergunte a ele, em português, quanto sai para levarmos o móvel?
O cliente: Claro que não!
Um de nós (em português): E aí, velho? Quanto a gente cobra pra levar esse negócio pro caminhão?
O outro (em português): 20 dólares.
Um de nós (em inglês): 20 dólares está bem para você?
O cliente (pegando a carteira): Está ótimo.
Um de nós: Para nós também.

Então, nossa tática era sempre essa. Um fala inglês. O outro não fala nada, embora meu inglês estivesse bem legal. O Sérgio, então, nem se fala. Anos antes, ele havia realizado meu sonho adolescente de fazer intercâmbio cultural. Fala inglês fluente e sem sotaque. Perfeito. Sérgio era um cara de bem com a vida e inteligente. Muito ligado à terra natal, volta e meia se lamuriava com saudade das meninas de Salvador, reclamava da gelada Nova York e da frieza das mulheres da cidade. Aliás, vivíamos fazendo comparações entre a mulher brasileira e a americana. Elogiávamos as gurias do Brasil e fazíamos críticas à mulherada da América. Mas como dizia o Sérgio: “Mulher boa mesmo é mulher do meu lado”.

E com esses papos íamos nós com o nosso caminhão preto com o baú todo pichado ruas e estradas afora. Certa vez, tínhamos algumas entregas em Springfield, uma pequena localidade distante cerca de 40 quilômetros de Nova York, e arredores. No primeiro endereço, um condomínio lindo, no meio de um bosque. As casas eram grandes, mas sem sofisticação. Aquelas residências que você está acostumado a ver nos filmes, com jardins na frente, sem grades, cercas ou muros. Algumas imagens dos Estados Unidos permanecem grudadas na minha mente até hoje. As casas, por exemplo.

Bem, desci do caminhão enquanto o Sérgio manobrava. Com a nota fiscal na mão, toquei a campainha. Uma mulher jovem, de uns 30 anos, atendeu. Apesar do frio, ela vestia uma camisola curta. Estava sem sutiã e de pés descalços, aproveitando o conforto da calefação residencial.

Ela: Hi.
Eu (mostrando a nota fiscal): Hi.
Ela (abrindo a porta): Ok. Come in.
Eu: Obrigado. Vou buscar meu colega e a poltrona.

Ela havia comprado uma espécie de cadeira do papai. Enorme e em couro branco. Os móveis eram sempre cobertos por um plástico protetor. Cheguei ao caminhão, e o Sérgio já estava com a tal cadeira na calçada.

Eu: Sérgio, tu não vai acreditar o mulherão que tá lá dentro. Só de camisola, linda.
Sérgio (com um carregado sotaque baiano e olhando para o céu nublado): Ô, meu Deus! Ô meu Deus.

Havíamos combinado que só eu falaria em inglês. Entramos na casa. Ela cumprimentou o Sérgio com um novo e maravilhoso “Hi”. Ele sacudiu a cabeça olhando só para as pernas dela.

Eu (em inglês): Onde colocamos o móvel?
Ela: Pode ser ali no canto. Fica numa boa posição para ver televisão.
Eu (em inglês): Ok.
Sérgio (em português): Se eu tivesse encontrado na Bahia uma mulher dessas jamais teria vindo pra cá carregar sofá, Juan. Jamais.

Puxei com força o plástico para rasgá-lo, como sempre fazia. Mas fui interrompido pelo Sérgio.
Ele: Que pressa é essa? Tá louco! Vamos curtir um pouco mais. Juan, olha pra isso! Que pernas! Lisas. E o rosto? E esse cabelo de quem acaba de acordar, Juan. Que mulher! Puta que pariu!
Eu (em português): Velho, vamos de uma vez porque temos um monte de entrega pra fazer.

Enquanto conversávamos e tentávamos nos livrar dos plásticos, ela caminhava pela casa de um lado para o outro. Vi que ela preenchia o cheque. Em geral, era assim: os clientes pagavam a metade do valor do móvel na loja e o restante na hora da entrega. Alguns pagavam a segunda parcela em dinheiro vivo. Ou seja, vivíamos cheios de dinheiro no caminhão. E nunca ficamos com um centavo de ninguém. Nossa contabilidade diária fechava certinho na empresa. Já disse: não fui para lá para tirar nada de ninguém. Fui pra me divertir. Com os plásticos enrolados nos braços, caminhei até a saída da casa. Peguei o cheque das mãos dela, agradeci e disse tchau. Atrás de mim vinha o Sérgio. Puxando a maçaneta do lado de fora da porta, ele disse um comportado thank you.

Ela (em português!): Eu que agradeço, viu. Obrigado e boa sorte.

Quando ouvi a mulher falando em português, congelei como se estivesse pelado no Central Park durante um dia de neve. O Sérgio, com a boca aberta e agarrado à maçaneta da porta já fechada ficou imóvel.

Ele: Puta que pariu, Juan. Que merda!

Entramos no caminhão apressados.
Eu: Sai logo daqui, Sérgio. Será que ela vai ligar pra loja? Se ela fizer isso tu tá fudido!
Ele: Eu, não! Nós!
Eu: Por que nós? Quem ficou dizendo merda pra mulher foi tu. Essa mania de ficar falando português na frente de todo mundo é foda, Sérgio. Na frente de cliente chinês e indiano, tu reclama em português porque os caras não dão gorjeta. A gente sabe que chinês e indiano não dão gorjeta. Na frente de mulher gostosa, tu solta o verbo. Foda, velho.
Ele (gargalhando): É, mas tu tá sempre comigo. Então a culpa também é tua, que permite que eu continue dizendo merda.
Eu (não suportei a provocação e tive que gargalhar também): Acelera essa porra porque o dia começou mal. Além dessa cagada, não pegamos gorjeta.
Ele: Isso é o que é o pior. Coisa que fico puto é não ganhar gorjeta. Tá certo que ela é gostosa. Mas mulher pão-dura não dá!
Ele (já entrando na highway): Pega a nota aí. Onde é o próximo cliente?
Eu: Danbury. O nome do comprador é chinês.
Ele: Olha pra isso, Juan! Será que vai ser um dia sem gorjeta?

Terminamos o expediente com vinte e seis dólares de gorjeta cada um. E o melhor. A brasileira gostosa que se passou por americana não ligou para a loja.

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