segunda-feira, 24 de março de 2008

Uma pequena história em Nova York

O conteúdo deste blog, que também pode ser uma espécie de e-book, é uma coletânea de pequenas histórias que ocorreram nos últimos anos da década de 80, quando vivi em Nova York. Com apenas 21 anos, tive mais experiências boas do que más na metrópole do planeta. Meus Contos de Nova York tem uma dezena de textos e é o resultado de um dos melhores períodos da minha vida e que, de tão intenso, parece que tudo o que vivi lá se passou dias atrás, e não há 20 anos. Tenho grafados na minha memória os episódios que narro aqui e outros tantos que simplesmente resolvi não revelar. Estes pequenos contos – alguns engraçados, outros nem tanto – misturam realidade e invenção, embora quase todos os fatos relatados aqui, de fato, ocorreram. Para preservar pessoas e lugares, optei por criar personagens em vez de revelar seus nomes verdadeiros.

O começo da aventura

Minha relação com o exterior começou em meados da década de 80. Nem queria ir para algum lugar específico, mas queria ir para algum lugar. Em princípio, meu sonho girava em torno da Europa e sua História, seus museus, seus castelos e sua cultura. Mas quando se tem 20 anos, o destino é um imenso portão de acesso, liberado para milhões de oportunidades. Viajar era tudo o que eu queria. E me preparei para isso. Fiz incontáveis intensivos no Cultural, em Porto Alegre, e adorava traduzir músicas do Neil Young e do Bob Dylan, especialmente, mas também do Led Zeppelin e do Eric Clapton. Achei que serviria para melhorar meu inglês. E ajudou, acredite. Pouco, mas ajudou. As letras ampliam o vocabulário, reforçam o aprendizado de expressões idiomáticas e nos ensinam algumas gírias. Apesar de estudar o inglês yankee, naquela época meu sonho tinha nome e endereço: Londres, Inglaterra. O problema é que eu esqueci de revelar meu desejo ao destino e seus caprichos.

Eu tinha razões de sobra para sustentar minha obsessão por Londres. Pelo menos eu achava que tinha. Meu pai havia morado na Inglaterra e também na Noruega na década de 70 e era – e até hoje é – um grande incentivador dos que querem desbravar o mundo com uma mochila nas costas. Eu passava dias e dias conversando sobre a Europa com meu pai. Os olhos dele brilhavam ao falar sobre suas experiências. Peripécias nos aeroportos, gafes em inglês, passeios de trem pelo Velho Continente civilizado. Tudo aquilo só aumentava o meu desejo de me mandar.

Foi aí que, lá por 1983, meu pai me arranjou um emprego. Era auxiliar de escritório. Ganhava pouco, mas como não precisa ajudar financeiramente em casa, a grana defendia as festas e dava para comprar algumas roupas, discos e ainda conseguia trocar algum dinheiro por dólares. Fiz isso durante cerca de dois anos. Assim, minha viagem para o Exterior começou a deixar o campo das conversas na cozinha da casa do meu pai para ingressar na esfera das possibilidades. Aos poucos, senti que meu sonho se aproximava da realidade. E comecei a fazer conjecturas e levantar informações. Quanto custaria o aluguel de um apartamento? Quanto de dinheiro eu precisaria levar para me manter por alguns meses? Como seria lavar louças em um restaurante ou entregar pizzas? Enfim, tratei de começar a virar minha cabeça para a Zona Norte de Porto Alegre. Mais precisamente para o Aeroporto Internacional Salgado Filho.

Descobri que uma amiga vivia em Londres. Quero dizer, sabia que ela vivia entre Londres e algum outro ponto da Europa. Não era uma grande referência na sobriedade londrina, mas era melhor que chegar lá e não ter ninguém para dizer Olá, como foi de viagem? ou Seja bem-vindo! Tinha receio de chegar a um lugar completamente diferente, com outro idioma, outros costumes, outras regras, outro tudo. Acho que também tive medo de ter medo. Porque o medo fora de controle pode colocar tudo a perder. Meu antídoto contra esse sentimento era a determinação. Eu estava determinado e empolgado.

Havia retirado o passaporte na Polícia Federal, e o envelope que guardava no meu armário já estava ficando mais gordinho de notas de dólar de baixo valor. Enfim, o planejamento da minha sonhada viagem caminhava a passos firmes. Era primavera de 1985, e a idéia era embarcar entre janeiro e fevereiro do ano seguinte. Foi quando recebi uma notícia desanimadora. Minha amiga que vivia em Londres havia partido para um lugar incerto e não sabido. Pânico total. Meus contatos na Europa tinham se reduzido de uma viva alma para ninguém.

Fiquei confuso, inseguro e não sabia exatamente como lidar com a sensação de que toda aquela expectativa estava ficando no quase. O pior é que eu só tinha um único, solitário e escasso plano de viagem. Só tinha o plano A. Eu não tinha um plano B! Consumi alguns dias e muitas noites para me reabilitar do golpe que ele, o destino, havia me dado. Fritei neurônio para encontrar uma alternativa. Custei a admitir, mas tinha de começar do zero. Escolher outro lugar, outro país e, se possível, outro contato. Era preciso voltar à cozinha do meu pai. Entre pizzas e cervejas, novas conversas. Cada gole, uma idéia. Cada pedaço de calabresa, uma cidade diferente. Numa noite quente e mormacenta, pouco antes do meu aniversário, em novembro, deixei a casa dele um pouco afetado pelo consumo de Budweiser, mas feliz e eufórico novamente. Tinha mais que um novo lugar para sonhar. Eu deixei o prédio da Avenida Independência com uma nova cidade para viver: Nova York.

PARTE 1 - A primeira escala

Aquele dia nunca mais saiu da minha cabeça. Minha turma em Porto Alegre se preparava para encarar as loucas e quentes noites do carnaval de Laguna (SC) – que hoje, dizem, já não são mais as mesmas. Eu, que sempre fui chegado numa festa, entendia a euforia da galera, mas meus pensamentos estavam ocupados – e preocupados – com o que me esperava nos Estados Unidos. Embarquei em São Paulo num vôo das Linhas Aéreas Paraguaias – isso mesmo, Linhas Aéreas Paraguaias! Era o que tínhamos naquele momento! Pisei no Aeroporto de Miami por volta das 22h.

Fazia frio e eu não me sentia confortável, estava intranqüilo, inseguro e meio atordoado com o tamanho do aeroporto, grande demais para quem só tinha visto o velho e apertado Salgado Filho. Mas logo tive que encarar o primeiro desafio: o Departamento de Imigração. Fiquei na fila dos estrangeiros aguardando a chamada para apresentar meu passaporte e dizer ao agente o que eu queria fazer nos Estados Unidos. Não tive tempo de me olhar no espelho, mas acho que minha cara já começava a aparentar pavor. Aquelas histórias de que mesmo com visto muita gente é impedida de entrar no país deve ter congelado meus olhos no tamanho GG.

“Next!”, ouvi o agente gritar. Era para mim. Com uma pequena mochila, me aproximei do guichê e disse um singelo Hi!. Apesar de sentir segurança no meu inglês, achei melhor não dar uma de esperto. Falei o mínimo necessário. O cara nem respondeu. Pegou meu documento, minha passagem e foi logo perguntando quantos dias iria ficar nos Estados Unidos e quantos dólares eu levava na carteira. Com essas duas respostas, conclui que ele faria uma relação entre a grana que tinha e o número de dias que pretendia ficar. Disse que iria passar uns 10 dias e tinha US$ 1,3 mil. Não menti. Aliás, evite mentir. Pelo menos na frente de um agente do Departamento de Imigração dos Estados Unidos. Se desconfiarem de você, eles irão pedir para ver sua carteira. Um pequeno desencontro de informações pode frustrar seus planos e colocar fim à aventura. Meus olhos continuavam grandes, aguardando o desfecho da perícia no guichê. Dei uma olhada para a fila num gesto involuntário, talvez para aparentar tranqüilidade. Observei que as pessoas que aguardavam minha saída da imigração estavam como eu: com os olhos arregalados e com medo de serem barradas no baile. Eu ainda observava a fila quando o barulho do carimbo retumbou nos meus ouvidos. “Cuide-se em Miami. Tenha uma boa noite”, disse o agente, devolvendo meus documentos.


Peguei meu passaporte e saí caminhando apressado do guichê. Já com a mala na mão, comecei a percorrer os corredores gigantescos atrás do setor de informações. Queria vaga em algum hotel próximo do aeroporto. Imaginei que dormir em Miami e partir na manhã seguinte para Nova York seria a melhor alternativa. Não queria chegar de madrugada a uma cidade enorme, estranha e sem conhecer uma única pessoa. A idéia foi boa, mas a coisa não saiu como eu imaginava. Depois de comprar a passagem para as 8h da manhã do dia seguinte, descobri que não havia lugar em nenhum hotel nas redondezas.

O jeito foi dormir no chão do aeroporto. Encostei minha mala nas costas, acomodei a cabeça no banco, estiquei as pernas no carpete e abracei a mochila. Minha ansiedade foi vencida pelo cansaço. Apaguei. Só acordei cerca de duas horas depois, com um policial cutucando meu pé direito. Ele perguntou de onde eu vinha e para onde eu ia. Satisfeito com a minha resposta, ele disse para eu me agasalhar. “A temperatura está ficando cada vez mais baixa. Vista alguma coisa”, ordenou. Foi um toque legal, mas não consegui mais pegar no sono. Fiquei acordado até embarcar para Nova York num vôo da Continental.

PARTE 2 - Enfim, Nova York

Aquele domingo amanheceu cinzento em Miami.. Estava frio, mas nada que pudesse assustar alguém acostumado com os dias de inverno do Rio Grande do Sul. Percebi que estava bem menos ansioso do que no dia anterior. Até porque em Nova York eu não teria de passar novamente pelo estresse de encarar o Departamento de Imigração e sua fila de apavorados. A viagem foi tranqüila até o Aeroporto La Guardia, exclusivo para vôos domésticos. Ao sair da área de desembarque e colocar pela primeira vez meus pés na cidade que agitou meus pensamentos durante meses, respirei fundo.

Caminhando na contramão de dezenas de caras oferecendo táxi, registrei as duas primeiras impressões do lugar ao chegar à calçada. Impressão número um: ao contrário de Miami, Nova York estava gelada. Nevava muito. Impressão número dois: o cheiro. Juro. Tenho entranhado em algum lugar do meu cérebro o cheiro da cidade. Algo que mistura odor de catalizador de carro, vento frio e aroma de café. Pode parecer uma descrição nojenta, mas acho o cheiro de Nova York irresistível, atraente.


Entrei num yellow cab – procure pegar sempre um táxi amarelo. É mais seguro e tem preços, digamos, honestos – em direção ao Hotel Remington, na Rua 46, no coração de Manhattan e um tradicional reduto de brasileiros. Quem me deu a dica do hotel foi o meu pai. Não dei uma palavra com o motorista, que parecia um jogador do New York Knicks. Entre um e outro gole de chocolate quente ele me fez duas ou três perguntas. Eu só disse ‘yes’ e ‘no’. Conheço as minhas reações. Quando fico muito quieto, tem coisa. Senti que começava a ficar com medo da cidade. O carro avançava rumo à Manhattan, e eu tentava acompanhar com os olhos os prédios altos, as praças e ruas desertas, típicas de um domingo nevado.

O táxi parou na frente do Remington. Foi quando protagonizei o primeiro lance bisonho em terras norte-americanas. Paguei a corrida, recebi o troco e fiquei aguardando o jogador de basquete descer para abrir o porta-malas e tirar minha bagagem. Mas ele ficou imóvel, só me olhava pelo retrovisor. E eu de olho nele, também pelo espelho interno. Tinha receio de descer do carro para pegar minha mala e, neste meio tempo, ver o carro arrancar com todas as minhas roupas. Imagine ficar sem cueca, meia, calça, casaco, blusão, camiseta e botas no primeiro dia em uma Nova York congelada pela neve. Decidi que daquele banco eu não sairia. Mas o motorista perdeu a paciência comigo:

Ele: “Por que você não pega sua bagagem?”
Eu: “Por que você não abre o porta-malas?”
Ele: “O porta-malas já está aberto, senhor.”

Constrangido, olhei para trás e vi o capô traseiro escancarado. Até aquele dia do ano de 1986, nunca tinha visto um carro que o porta-malas poderia ser aberto a partir de um botãozinho interno. Pedi desculpas e desembarquei. Por via das dúvidas, agi rápido. Evitei perder o contato com a lataria do carro e, antes de fechar a porta, peguei a bagagem rapidinho.

Entrei no hotel. Perguntei se tinha vaga. Tinha. Disse que queria um quarto por alguns dias. Fui aceito depois de pagar antecipadamente duas diárias de US$ 60 cada. Subi acompanhado do segurança do hotel, que também parecia um jogador de basquete. Enquanto levava minha mala, ele disse ser um apaixonado pelas coisas do Brasil, como o carnaval, o Rio, aquelas coisas que sempre falam do país. Agradeci e entrei no apartamento confortável. Sentei na cama por alguns instantes. Ao lado da cabeceira havia uma pequena janela vertical – daquelas que têm escadinhas do lado de fora do prédio. Isso mesmo, aqueles prédios que a gente costume ver nos filmes. Arrastei a cortina. Deixei a janela livre para ver a neve cair devagar.

Olhando fixamente para a rua até não perceber mais o que estava vendo, o curta-metragem da minha vida passou pela cabeça. Lembrei de coisas e pessoas importantes e irrelevantes. Recordei fatos engraçados e tristes. Vi com perfeição os rostos da minha mãe, do meu pai e dos meus irmãos. De tias, tios e primos. Enxerguei meus avós, meus amigos e os olhos negros da namorada que havia deixado horas antes no saguão do aeroporto de Porto Alegre e com quem jamais voltaria a ter um relacionamento como antes.

Recuperei o visual da janela e da neve, que continuava flutuando pelo ar. Pensei o que todas aquelas pessoas que eu amava estariam fazendo naquele momento em que eu estava só, absolutamente só, num quarto de hotel na maior cidade do planeta. Joguei as costas para trás, encostei a cabeça no travesseiro e não segurei o choro. Chorei de soluçar. Acho que nunca mais chorei daquele jeito. Aos poucos, fui me acalmando até perceber que já havia chorado demais. Então, decidi que eu estava onde muita gente queria estar. Eu me dei conta que precisava cair na real e me reerguer da saudade que me pegou de surpresa olhando a neve cair. Levantei, tomei um banho, coloquei uma roupa quente e encarei a neve nas ruas. Naquele momento começava a grande aventura da minha vida.

PARTE 3 - Conhecendo o terreno

Foi uma caminhada longa e despreocupada, apesar dos cerca de 15°C negativos. Fiquei fascinado com as ruas largas, os prédios e os detalhes da arquitetura de edifícios lindos, alguns construídos no século XIX, mas plenamente conservados, e outros modernos, misturando vidro e metal. Bateu a fome e, como não conhecia nada, preferi encarar um lanche no Burger King. Devidamente alimentado, voltei para o calor do hotel.

O frio já estava passando dos limites. Minhas botas não eram as mais apropriadas para enfrentar uma temperatura daquelas. Meus pés estavam gelados. Antes de subir para o quarto aquecido pela calefação, comprei alguns jornais. Queria ler as notícias, saber o que estava acontecendo e, de quebra, dar uma olhada nos classificados. Além de aproveitar uns dias em Nova York, poderia descolar uma vaga em algum restaurante. Seria uma ótima levantar uma grana nas férias, embora a lei americana não permita o trabalho de estrangeiros sem um visto adequado para isso.


Mas não seria eu, um cara de 20 anos recém-chegado à América, que teria poder de desestabilizar as relações diplomáticas entre Brasil e Estados Unidos por uma simples vaga em um dos milhares restaurantes nova-iorquinos. Todo mundo sabe que boa parte dos moradores da cidade trabalha de forma ilegal, exercendo atividades que os americanos não estão mais dispostos a fazer. Integram o mundo do subemprego as vagas de faxineiro, operários da construção civil (pequenas obras e reformas), carregadores, garçons, auxiliar de garçons (busboy), mensageiros, engraxates e lavador de pratos.

Aliás, aquele papo de ir para os Estados Unidos lavar pratos não passa de folclore. Pode até ter sido a porta de entrada de imigrantes brasileiros nas décadas de 60 e 70. Mas a partir dos anos 80, os mexicanos tomaram conta da função. Só eles conseguem lavar pratos em grandes restaurantes. Só eles agüentam – não sei como – as altas temperaturas das louças que saem da pré-lavagem das máquinas que agilizam a rotina frenética da cozinha. É inacreditável como suportam. O calor das porcelanas e dos metais é insuportável. Queima como se você estivesse colocando a mão dentro de uma churrasqueira. E é preciso colocar a mão no interior da máquinas dezenas de vezes por hora. Brasileiro gosta de sofrer, mas essa missão ele preferiu deixar para os irmãos mexicanos.

Num degrau mais elevado do subemprego estão os cargos de motorista de táxi, de caminhão ou de limosines, bartender de bares ou clubes, balconista (o fato de saber dois idiomas é fundamental e agrada muito os comerciantes), babysiter e por aí vai. Mas eu não queria fazer carreira no submundo da sobrevivência. Só queria me divertir. Claro que só existe divertimento quando se tem algum no bolso, mas não fui para os Estados Unidos para tirar o emprego de ninguém, juntar dinheiro e voltar rico à terra natal. Tanto não fui com este objetivo que voltei logo para o Brasil e já estive na América outras vezes. Fui novamente a Nova York em 1994 e quatro anos depois passei alguns dias em Washington e Detroit. Nunca pretendi viver para sempre o sonho americano. Só queria curtir um pouco este sonho. Não vivemos sonhos eternamente, você sabe. Sonhos são efêmeros, rápidos. Por isso são inesquecíveis.

PARTE 4 - Classificados

Onde eu estava mesmo? Ah, sim, nos classificados. Juntei minhas anotações e passei a segunda e a terça-feira conhecendo um pouco de Manhattan. O frio continuava intenso, mas o sol brilhava – adoro essa sensação de muito frio com sol. De vez em quando, entre um café e outro, lembrava dos recortes e ia conferir a tal vaga. Na maioria das vezes, evitei entrar nos bares e restaurantes em busca de trabalho. Mais por insegurança, porque não sou nada tímido. Meu medo não era levar um ‘Não’. Meu medo era ouvir: ‘Ok, boy. Job is yours.’ O que eu faria se, na tentativa de pegar um emprego eu realmente conseguisse o emprego. Enquanto não dava fim ao meu pequeno dilema trabalhista, conheci o Empire State, o Madison Square Garden (ah, o Madison... Quantos jogos de basquete e shows eu viria a assistir lá... Alguns deles em ótima companhia. Outros, nem tanto). À tarde, dei as primeiras espiadas no Central Park, que está encravado na minha mente até hoje. É o melhor lugar para ficar quando se está na grande cidade sitiada por prédios.

Parece incrível, mas em 72 horas eu já caminhava por Manhattan com uma certa desenvoltura. Algo me fazia sentir bem naquelas ruas. Só uma coisa me preocupava naquele fevereiro de 86: dinheiro. Sim, as diárias do Remington consumiam um bocado das minhas economias e eu não era exatamente um cara controlado com grana no bolso. Se antes o emprego não passava de uma experiência divertida, agora já começava a se tornar uma necessidade. Na minha busca por um bico, conferi um anúncio no jornal. Era num restaurante bem freqüentado e chique de Manhattan, na Rua 72, pertinho da Broadway.

Fui recebido pelo dono do restaurante. “Hi”, eu disse. “Moring”, young man”, respondeu, já emendando se eu estava ali para ser o busboy que ele precisava. Falei que sim. Daí ele me fez a pergunta que eu mais temia: “Você é legal nos Estados Unidos”. Não menti. Lembre-se: evite mentir. Pelo menos na frente de um agente do Departamento de Imigração e de alguém que está prestes a te conseguir um emprego. Disse que não era legal, que estava em Nova York havia poucos dias, mas que meu dinheiro estava terminando e eu precisava pegar um emprego temporário apenas para recuperar minhas economias e me mandar de volta pra casa. Não tinha como ir embora do país sem dinheiro. Como num filme, ele saiu de trás do balcão, caminhou lentamente até a porta de entrada e arrancou da porta de vidro o anúncio para busboy e se virou para mim: “Estou te esperando amanhã, 9h”.

Fiquei assustado. Amanhã? Mas eu tinha planejado ir ao Chinatown, ao World Trade Center (em 1986 as Torres Gêmeas ainda estavam lá, você sabe) e dar outras das minhas voltinhas pela cidade. De qualquer maneira, disse um quase inaudível “Ok”. Antes de ir embora, percebi que acabava de chegar a um lugar diferente. Eu já estava na porta, quando o dono do restaurante me chamou.

Ele: “Onde você está hospedado?”
Eu: No Remington, na 46. Um pouco caro.
Ele: Você precisa fica em um lugar mais barato. Venha cá.

Voltei a me aproximar do balcão. Em minutos, ele ligou para o YMCA, a Associação Cristã de Moços. É uma espécie de hotel para estudantes, com preços muito mais acessíveis. No meu caso, eu passaria a pagar menos da metade do que pagava no Remington. Como se me conhecesse há tempos, ele confirmou minha reserva no YMCA. Saí do restaurante encantado com a receptividade do cara.

A partir daquele momento, meus passeios estavam cancelados. Percorri o trajeto da 72 até a 46 a pé. E rápido. Queria chegar logo ao hotel, pegar minhas coisas e tomar o rumo do YMCA. Cheguei com calor ao Remington, apesar dos 14°C negativos. Subi correndo até o meu quarto, coloquei tudo dentro da mala e da mochila e desci. As minhas diárias estavam todas pagas, mas mesmo assim fui ao balcão para me despedir dos meus primeiros anfitriões. No entanto, fui impedido de sair. Surpresos, a atendente e o segurança me perguntaram para onde eu estava indo. Disse que havia conseguido uma vaga no YMCA da 14th Street, West Side. Meus amigos do Remington não se convenceram tão facilmente. O segurança quis saber se eu já conhecia o lugar.

Ele: “É um lugar limpo? O que te pareceu as pessoas que trabalham lá?
Eu: “Não sei como é o lugar. Nunca estive lá. E também não sei como são as pessoas.
Ele: “Deixe suas malas aqui. Nós tomaremos conta delas para você. Vá ao YMCA. Caso o ambiente seja de seu agrado, volte e busque suas coisas.
Eu: “Muito obrigado. Volto em seguida”.

Confesso que nunca esperava essa seqüência de lances de solidariedade, de ajuda, protagonizados numa única manhã em plena Nova York, a metrópole preferida pelos cineastas para ser o cenário de filmes de violência e criminalidade. Além dessa cordialidade surpreendente, preciso dizer que sempre fui um cara de sorte. Muita sorte. Desde que nasci, uma estrela me acompanha. Você pode não acreditar, mas eu sei exatamente que isso ocorre comigo. Eu sei justamente o tamanho da estrela que me ilumina. Duas horas depois, eu bebericava uma Budweiser, confortavelmente instalado no YMCA. Tinha um lugar mais barato para dormir e um emprego para recuperar o investimento. Que felicidade!

Parte 5 - Hora de trabalhar

Meu primeiro dia de trabalho foi como o primeiro dia de trabalho de todo mundo, em qualquer lugar do mundo. Com um detalhe: eu não tinha a mínima idéia do que deveria fazer no restaurante. A função de busboy era uma incógnita. Não havia aprendido nos cursos de inglês nem nas músicas que traduzia o que significava busboy. Eu nunca tinha ouvido falar do menino-ônibus. Na chegada, o chefe dos garçons me apresentou para os colegas e pra galera da cozinha. E fez as recomendações fundamentais para o bom andamento do trabalho.

Ele: A sua função aqui é retirar das mesas as louças e copos sujos depois que os clientes fizerem as refeições, colocar tudo na bandeja e levar para a cozinha.
Eu: Só isso?
Ele: Não. Depois de deixar tudo na cozinha, volte para a mesa e pergunte quem quer american coffee?
Eu: Por que tenho que dizer american coffee e não apenas coffee?
Ele: Porque você está nos Estados Unidos, respondeu meu chefe, seco.
Eu: Ok.
Ele: Fale o mínimo possível com os clientes até que o seu inglês esteja melhor.
Eu: Certo. Farei isso.
Ele: Outra coisa: Quando clientes novos chegam, você precisa servir água para todos os que estiverem na mesa.
Eu: Não preciso falar com eles neste caso?
Ele: Não. Sirva os cálices de água a todos. Em algum momento, todos irão beber.
Eu: Ok.

O restaurante funcionava 24 horas por dia e servia do café da manhã à lagosta. No começo, claro, me atrapalhei. Garçons e busboys atuavam em determinadas áreas. Ou seja, o salão era fatiado em quatro partes. Um sinal com a cabeça foi a senha para eu levar água a um casal que acabara de ser recebido pelo garçon. Peguei a jarra e fui. Servi os dois cálices e saí. Enquanto fazia meu trajeto de volta, o garçon fez um novo sinal. Percebi que tinha feito algo de errado. Olhei para trás e vi o casal imóvel, olhando para a mesa. Voltei, pedi desculpas e retirei a enorme jarra que atrapalhava a troca de olhares entre os pombinhos.

Aos poucos, fui me acostumando com a rotina do restaurante e gostando do que fazia. Com o inglês fluente, acabei me transformando em um garçon falante, muito educado e cheio de entusiasmo. Fiz amizades com americanos e, especialmente, com americanas. Volta e meia lembro de Dorothy. Era uma típica nova-iorquina: ruiva, de olhos verdes, inteligente, alegre e que falava muito alto. Quase gritava. Mas o seu estilo frenético me ajudou a deixar Porto Alegre bem mais para trás.

Já não ligava mais para o Brasil pra dizer que eu estava com saudade nem que estava louco para voltar. As ligações para os meus pais eram menos freqüentes, mas entusiasmadas com a vida que levava em Nova York, apesar de reclamar muito do volume de trabalho. O YMCA também havia ficado para trás. Depois de um tempo carregando bandejas, fiz algumas amizades legais. Daí a encontrar um canto na casa de alguém não demorou muito. Dormia na sala de um apartamento em Bay Ridge, no Brooklyn. Um lugar lindo, que nada tem a ver com a fama do Brooklyn no Brasil. Brooklyn é praticamente uma cidade, de tão grande. Há áreas sinistras – na sua cidade não tem nenhuma área sinistra? –, mas em geral é um distrito absolutamente agradável, onde as pessoas se cumprimentam quando se cruzam pelas ruas, na padaria ou nos bares irlandeses espalhados pelo bairro.

Pelo menos era assim antes de 11 de setembro de 2001. Ainda passei por um studio na 8ª Street, em Manhattan, mas acabei voltando ao Brooklyn, onde aluguei o andar térreo de uma casa muito simpática na Senator Street. Adorava a casa, a vizinhança, a segurança e meus vizinhos irlandeses que moravam no andar de cima. Eram festeiros, bebiam mais que o quarteirão inteiro, sempre ao som de Rod Steward, e causavam problemas ao proprietário porque resistiam em pagar o aluguel.

PARTE 6 - Noites de gala

Uma vez por ano, o restaurante era fechado, à noite, por um grupo de políticos para uma espécie de confraternização. O espaço atendia, diariamente, cerca de 400 pessoas. Nesta noite, o público chegava a quase 500. O salão era divido em quatro partes, e os garçons e os busboys ficavam fixos em suas respectivas alas. A coisa era tão organizada, que cada ala tinha a sua própria caixinha de gorjetas, cujo total de cada noite era rateado entre os integrantes daquele grupo. Era justo.

Nesta noite especial, no entanto, o negócio era mais livre, e a caixinha praticamente não fazia parte do roteiro. Cada um ficaria com a gorjeta que os clientes decidissem presentear. E a coisa começava cedo. Logo na chegada – limusines paravam umas atrás das outras em frente ao restaurante para deixar os convivas –, alguns já distribuíam presentes.

- Good evening, young boy! Spend it with your girlfriend next weekend. But do not forget: Red wine all night long! – disse um senhor simpático, com cara de Papai Noel, colocando uma nota de 100 dólares no bolso do meu terno, mas alertando que eu mantivesse seu cálice de vinho tinto sempre cheio.

A distribuição de gorjeta se repetia durante a noite inteira, em um ambiente elegante, com comida farta e deliciosa, Jack tocando de tudo um pouco ao piano, mulheres altas, lindas e espertas, champanhe gelada e vinhos tintos e brancos franceses e californianos, charutos cubanos (ainda que seja proibida a venda de charutos cubanos nos Estados Unidos), homens engravatados e endinheirados, muitos com os olhos arregalados balançando freneticamente copos de uísque com gelo, os rumos da política de Nova York em debate permanente e em voz alta, o Chef exaltadíssimo com os elogios dos clientes, o dono do restaurante – uma pessoa muito agradável e solidária – sorria sem parar, e o bartender, Oswaldo, brasileiro de família tradicional do Maranhão e que havia sido expulso de casa aos 20 anos porque era gay, era o mais contente de todos com o acúmulo descomunal de gorjetas em troca de seus drinks fantásticos.

Por alguns instantes, pensei que presenciava uma cena de um filme. Eu não era nem o ator principal nem o coadjuvante. Mas era um privilegiado. Um observador dentro da cena. Sem ninguém perceber, eu trabalhava, servia a clientela, embolsava minhas gorjetas e prestava atenção aos movimentos, aos sorrisos, aos abraços, aos flertes, às atitudes convenientes e inconvenientes. Eu fiz parte da cena, sem que ninguém notasse. Talvez nem eu mesmo tivesse a noção do que estava ocorrendo ao meu redor: uma típica festa da elite americana, num restaurante ao lado do Central Park, em Nova York. Agora, duas décadas depois, não consigo segurar um riso ao lembrar de mim mesmo, um cara de 20 anos, correndo com uma bandeja pelo salão chique, trabalhando duro e ganhando dinheiro para gastá-lo, integralmente, no final de semana seguinte em algum lugar da cidade ao lado de uma mulher.

PARTE 7 - Eu, o Alfredo e o Teixeira

Minha aventura ia de vento em popa. Quanto mais eu ficava, mais eu gostava de ficar. Ganhava um dinheiro razoável, mas que dava perfeitamente para satisfazer minha necessidade básica, que era me divertir. Depois de algum tempo no restaurante, me meti em outra empreitada: carregar sofás pelas ruas, bairros, estradas e cidades do Estado de Nova York. Arranjei um emprego em uma loja de móveis que tinha quatro ou cinco caminhões exclusivamente para fazer as entregas das mercadorias aos clientes.

Primeiro, trabalhei no warehouse, ou seja, no depósito da empresa que ficava em alguma rua do Queens. Era um tal de trazer e levar sofás, cadeiras e mesas de um lado a outro. Do depósito ao show-room e vice-versa. A maioria dos trabalhadores era formada por americanos, mas havia indianos e alguns brasileiros. Em pouco tempo saí do warehouse para o caminhão. Adorava passar o dia inteiro na rua, mas sentia saudade da camaradagem e da amizade de dois caras do depósito: Alfredo e Teixeira. Brasileiros, cariocas e impagáveis.

O Alfredo, botafoguense roxo, vivia nos Estados Unidos havia um bocado de tempo, tinha uma vida estabilizada, legal e cuidava do depósito. Teixeira era flamenguista doente e um grande frasista. Sempre tinha uma tirada engraçada, mesmo nos momentos difíceis. Estava nos Estados Unidos para se divertir. E se divertia. O Alfredo, não. Era compenetrado no trabalho. No meio de milhares de mercadorias, sabia de cor em que corredor e prateleira estava a armless (poltrona sem braço) bege, modelo Natuzzi3202. Mas havia duas coisas que faziam o Alfredo sofrer muito: as mulheres e a carteira de motorista. A habilitação já era motivo de gozação entre os colegas. Alfredo já tinha tentado mais de uma dezena de vezes o documento, mas sempre era reprovado no exame. Na véspera de mais um exame, Alfredo estava confiante.

Ele: Amanhã vou fazer o teste. Semana que vem quero ver um puto aqui pedir carona pra ir pra casa. Vou dizer bem alto: vai de trem!
Eu: Vai dar tudo certo, Alfredo. Amanhã tu vai tirar a carteira. Mas não provoca a galera porque depois tu roda no teste e ....
Ele: Até tu tá torcendo contra, é? Pensei que você tivesse do meu lado, gaúcho!
Eu: Mas eu tô do teu lado, porra! Só tô dizendo que tu deveria ir lá quieto. Faz o teste, passa e esfrega a carteira na cara deles na semana que vem. Não precisa fazer alarde.
Ele (gritando): Mas amanhã não tem pra ninguém! Amanhã o teste é meu! Vou sair do Motor Vehicles (o Detran americano) com a porra da carteira!
Eu: Amanhã à noite vamos tomar uma cerveja pra comemorar.
Ele (gritando): Por minha conta!

O dia seguinte foi de grande expectativa. Logo no começo da manhã, o assunto já era o Alfredo e sua carteira. Ele havia sido liberado pela manhã para ir ao Motor Vehicles. Carregamos o caminhão e saímos para as entregas do dia. Como naqueles tempos não havia celular e os caminhões não eram equipados com rádios, só ficaria sabendo sobre o teste no final da tarde, quando eu e o motorista voltaríamos para a loja.

Chegamos depois das 18h, uma hora depois do fim do expediente. Já não havia ninguém no warehouse. Fui direto ao vestiário para pegar minhas coisas. Ainda estava curioso para saber o que tinha acontecido com o Alfredo. Quando cheguei à porta do vestiário dei de cara com o Teixeira. A costumeira cara alegre tinha dado lugar a uma expressão que misturava tristeza e incredulidade. Entrei na peça para pegar minhas coisas e vi o Alfredo cabisbaixo, fumando e arrasado.

Ele: Rodei de novo.
Eu: Ganhei uma boa gorjeta hoje, Alfredão. Vamos embora que a tua cerveja eu pago.
Teixeira: E a minha?
Eu: Quando tu rodar num exame no Motor Vehicles eu pago a tua!

Duas horas depois estávamos bem embalados com uma dúzia de cervejas. O Teixeira destilava bobagens que me faziam dar gargalhadas. E dizia que seu inglês estava melhorando. Para provar que estava indo bem no novo idioma, provocava a garçonete, puxando assuntos banais sobre marcas de cerveja e de cigarro. E se ela não queria visitar o Brasil.

Teixeira (misturando carioquês com um inglês sofrível): É tudo por minha conta! Copacabana, o Pão de Açúcar, o Cristo Redentor, o Maracanã lotado com o Flamengo fazendo 1 a 0 no Vasco no último minuto!

A menina, uma loira linda, era educada. Sorria um pouco constrangida, mas não cortava o Teixeira, que sempre pedia cerveja fazendo sinal com os dedos e dizendo “mais two, mais two”. Ela percebia nos olhos dele que estava diante de um cara simples, mas de um espírito nobre e feliz. O Alfredo contrastava com o nosso clima. Ele continuava chateado com mais um fracasso no teste para tirar a maldita carteira de habilitação.

Alfredo: E amanhã ainda vou ter que agüentar aqueles filhos das putas dizerem que eu nunca vou conseguir tirar minha carteira. Principalmente o Paul (americano e um dos executivos da empresa, que pegava muito no pé do Alfredo por causa disso).

O pior é que sempre que o Alfredão ficava triste por causa da tal habilitação, começava a falar da sua falta de sorte com as mulheres. Misturava as lamúrias e ficava inconsolável.

Alfredo: Como é que eu vou conseguir uma mulher andando de metrô, gaúcho? Como? Me diz, Teixeira!
Eu: Bem...
Teixeira: Não esquenta a cabeça, Alfredo! Troca, porra. Larga de mão o metrô. Por que você não começa a andar de ônibus?
Alfredo (rindo pela primeira vez no balcão do bar): Você também é outro filho da puta, Teixeira!
Teixeira: Mais two! Mais two!

PARTE 8 - Pelas ruas e estradas de Nova York

Já disse que gostava de trabalhar no caminhão. Mas vou repetir: eu gostava de trabalhar no caminhão! Por uma razão bem simples: os dias eram todos diferentes uns dos outros. Chegava cedo e carregava o baú com o motorista. As peças eram colocadas na ordem de entrega, ou seja, colocávamos para dentro do caminhão as últimas entregas. E lá íamos para Manhattan, Brooklyn, The Bronx, Staten Island, Connecticut, Springfield, Union, Up State, meu Deus!, quantos lugares lindos eu conheci, quantas casas bacanas eu entrei, quantos dólares eu ganhei de gorjeta... Bons tempos aqueles. Além de curtir lugares diferentes, era uma oportunidade para conhecer ainda mais a cidade e as pessoas. Entregando móveis entrei, de fato, na casa americana. Conheci seus hábitos, a sua forma de viver e tentar entender as razões pelas quais tanta gente quer viver o american way of life. Vi apenas um pouco do estilo de vida deles, mas o suficiente para entendê-los.

Via de regra, as pessoas criticam os americanos, um pouco por sua ingenuidade, outro tanto pela eterna busca de ser o primeiro, o mais competitivo, e os Estados Unidos, principalmente pelas decisões políticas e pelo gosto desenfreado de seus governantes pela invasão de países indefesos. Eu ouço e compreendo. Às vezes concordo, mas também contesto e, de certo modo, defendo a forma de vida da população e sua visão de mundo. Por exemplo: quando termina o campeonato nacional de basebol (torço para os Yankeens, claro), o time não é campeão americano, mas mundial. É o The World Champion! Para os americanos, o mundo é o país deles. Eles são localistas. Quando perguntam para um brasileiro de onde ele é, o cara responde que é de São Paulo. Lá, quando fazem essa pergunta o sujeito responde que é do Brooklyn. Ou seja, ele não é da cidade de Nova York, mas de um bairro, de um distrito. Pode ser ruim, mas também pode ser bom. Também pode não ser nada. Não tenho a intenção de fazer a cabeça de ninguém em relação a nada.

Deixando de lado a sociologia, a antropologia e a geopolítica, o período na loja de móveis foi o mais divertido que tive em Nova York. Não apenas pela falta de rotina, mas também porque levava ótimas gorjetas e dava muitas risadas. Foi nessa fase que acumulei um punhado de histórias engraçadas. Não vou contar todas, claro. Mas não posso deixar de contar algumas.

O motorista do caminhão que eu trabalhava era um baiano. Como todos os baianos, Sérgio era um cara criativo. Músico, compositor, cantor, artista plástico e lento, tinha um pequeno estúdio em casa. Duas guitarras, amplificador, bateria eletrônica, enfim, uma parafernália que divertia a gente depois do expediente. O dia passava rápido com tanta entrega. Para negociar gorjetas melhores e estabelecer preços para pequenos favores aos clientes, como levar embora da casa do cara o sofá antigo, combinávamos que apenas um de nós falava inglês.

O cliente: Vocês poderiam levar este sofá velho embora? Não tenho lugar em casa para mantê-lo aqui.
Um de nós (em inglês): O meu colega não fala inglês. Você se importa que eu pergunte a ele, em português, quanto sai para levarmos o móvel?
O cliente: Claro que não!
Um de nós (em português): E aí, velho? Quanto a gente cobra pra levar esse negócio pro caminhão?
O outro (em português): 20 dólares.
Um de nós (em inglês): 20 dólares está bem para você?
O cliente (pegando a carteira): Está ótimo.
Um de nós: Para nós também.

Então, nossa tática era sempre essa. Um fala inglês. O outro não fala nada, embora meu inglês estivesse bem legal. O Sérgio, então, nem se fala. Anos antes, ele havia realizado meu sonho adolescente de fazer intercâmbio cultural. Fala inglês fluente e sem sotaque. Perfeito. Sérgio era um cara de bem com a vida e inteligente. Muito ligado à terra natal, volta e meia se lamuriava com saudade das meninas de Salvador, reclamava da gelada Nova York e da frieza das mulheres da cidade. Aliás, vivíamos fazendo comparações entre a mulher brasileira e a americana. Elogiávamos as gurias do Brasil e fazíamos críticas à mulherada da América. Mas como dizia o Sérgio: “Mulher boa mesmo é mulher do meu lado”.

E com esses papos íamos nós com o nosso caminhão preto com o baú todo pichado ruas e estradas afora. Certa vez, tínhamos algumas entregas em Springfield, uma pequena localidade distante cerca de 40 quilômetros de Nova York, e arredores. No primeiro endereço, um condomínio lindo, no meio de um bosque. As casas eram grandes, mas sem sofisticação. Aquelas residências que você está acostumado a ver nos filmes, com jardins na frente, sem grades, cercas ou muros. Algumas imagens dos Estados Unidos permanecem grudadas na minha mente até hoje. As casas, por exemplo.

Bem, desci do caminhão enquanto o Sérgio manobrava. Com a nota fiscal na mão, toquei a campainha. Uma mulher jovem, de uns 30 anos, atendeu. Apesar do frio, ela vestia uma camisola curta. Estava sem sutiã e de pés descalços, aproveitando o conforto da calefação residencial.

Ela: Hi.
Eu (mostrando a nota fiscal): Hi.
Ela (abrindo a porta): Ok. Come in.
Eu: Obrigado. Vou buscar meu colega e a poltrona.

Ela havia comprado uma espécie de cadeira do papai. Enorme e em couro branco. Os móveis eram sempre cobertos por um plástico protetor. Cheguei ao caminhão, e o Sérgio já estava com a tal cadeira na calçada.

Eu: Sérgio, tu não vai acreditar o mulherão que tá lá dentro. Só de camisola, linda.
Sérgio (com um carregado sotaque baiano e olhando para o céu nublado): Ô, meu Deus! Ô meu Deus.

Havíamos combinado que só eu falaria em inglês. Entramos na casa. Ela cumprimentou o Sérgio com um novo e maravilhoso “Hi”. Ele sacudiu a cabeça olhando só para as pernas dela.

Eu (em inglês): Onde colocamos o móvel?
Ela: Pode ser ali no canto. Fica numa boa posição para ver televisão.
Eu (em inglês): Ok.
Sérgio (em português): Se eu tivesse encontrado na Bahia uma mulher dessas jamais teria vindo pra cá carregar sofá, Juan. Jamais.

Puxei com força o plástico para rasgá-lo, como sempre fazia. Mas fui interrompido pelo Sérgio.
Ele: Que pressa é essa? Tá louco! Vamos curtir um pouco mais. Juan, olha pra isso! Que pernas! Lisas. E o rosto? E esse cabelo de quem acaba de acordar, Juan. Que mulher! Puta que pariu!
Eu (em português): Velho, vamos de uma vez porque temos um monte de entrega pra fazer.

Enquanto conversávamos e tentávamos nos livrar dos plásticos, ela caminhava pela casa de um lado para o outro. Vi que ela preenchia o cheque. Em geral, era assim: os clientes pagavam a metade do valor do móvel na loja e o restante na hora da entrega. Alguns pagavam a segunda parcela em dinheiro vivo. Ou seja, vivíamos cheios de dinheiro no caminhão. E nunca ficamos com um centavo de ninguém. Nossa contabilidade diária fechava certinho na empresa. Já disse: não fui para lá para tirar nada de ninguém. Fui pra me divertir. Com os plásticos enrolados nos braços, caminhei até a saída da casa. Peguei o cheque das mãos dela, agradeci e disse tchau. Atrás de mim vinha o Sérgio. Puxando a maçaneta do lado de fora da porta, ele disse um comportado thank you.

Ela (em português!): Eu que agradeço, viu. Obrigado e boa sorte.

Quando ouvi a mulher falando em português, congelei como se estivesse pelado no Central Park durante um dia de neve. O Sérgio, com a boca aberta e agarrado à maçaneta da porta já fechada ficou imóvel.

Ele: Puta que pariu, Juan. Que merda!

Entramos no caminhão apressados.
Eu: Sai logo daqui, Sérgio. Será que ela vai ligar pra loja? Se ela fizer isso tu tá fudido!
Ele: Eu, não! Nós!
Eu: Por que nós? Quem ficou dizendo merda pra mulher foi tu. Essa mania de ficar falando português na frente de todo mundo é foda, Sérgio. Na frente de cliente chinês e indiano, tu reclama em português porque os caras não dão gorjeta. A gente sabe que chinês e indiano não dão gorjeta. Na frente de mulher gostosa, tu solta o verbo. Foda, velho.
Ele (gargalhando): É, mas tu tá sempre comigo. Então a culpa também é tua, que permite que eu continue dizendo merda.
Eu (não suportei a provocação e tive que gargalhar também): Acelera essa porra porque o dia começou mal. Além dessa cagada, não pegamos gorjeta.
Ele: Isso é o que é o pior. Coisa que fico puto é não ganhar gorjeta. Tá certo que ela é gostosa. Mas mulher pão-dura não dá!
Ele (já entrando na highway): Pega a nota aí. Onde é o próximo cliente?
Eu: Danbury. O nome do comprador é chinês.
Ele: Olha pra isso, Juan! Será que vai ser um dia sem gorjeta?

Terminamos o expediente com vinte e seis dólares de gorjeta cada um. E o melhor. A brasileira gostosa que se passou por americana não ligou para a loja.

PARTE 9 - I like your boots

Sempre me senti seguro em Nova York. Nunca tive medo de andar sozinho pelas ruas de Manhattan ou do Brooklyn de madrugada. Claro, tinha cautela ao entrar nos vagões do metrô. O Departamento de Polícia da cidade (PNDY) alerta para que as pessoas evitem vagões vazios durante as viagens tardias.

Numa noite calorenta de verão, depois de algumas cervejinhas num charmoso bar do Village que tinha jazz e mesinhas na rua (eu adoro jazz e mesinhas na rua!) desci as escadarias do metrô para esperar o meu parceiro de tantas jornadas: o trem R, uma das linhas que cruzam o Hudson River, de Manhattan para Bay Ridge, em Brooklyn. Com o meu walkman no bolso e as gravações da K-Rock Classic Rock and Roll Radio na fita cassete no volume 10 (sim, sou do tempo da fita cassete, sim!), esperava pacientemente pela luz no fim do túnel. Quando as portas do R se abriram, levantei do banco de três lugares da estação, corri e me joguei numa das banquetas próximas da janela do trem.

Com a coisa já em movimento, dei uma olhada para trás. Além de mim e meu walkman, ninguém no vagão. Só ali me lembrei do alerta do PDNY. Resolvi ficar mesmo assim. Se a coisa apertasse, por algum motivo, era só cruzar as portas internas que ligam os vagões uns aos outros. Percebi que no carro da frente, por exemplo, havia muita gente tagarelando. Fechei os olhos, como sempre fazia no trem, e tratei de esperar, pacientemente, ouvir o maquinista dizer: Bay Ridge, next stop. Mas bem antes da minha parada, ouvi uma voz grave e próxima.

- I like your boots, disse o cara.
Olhei para o lado e vi um gigante. Parecia o Michael Jordan. Só que gordo. Ele se sentou do lado e repetiu a frase.
- I like your boots.

Percebi de cara que ele estava sob o efeito de alguma droga pesada. Pupilas dilatadas e os olhos pra lá de arregalados me olhavam sem parar. Também percebi que ele queria roubar as minhas botas. Ou pelo menos me ameaçar de algum modo. O que tenho certeza é que meu pequeno porre passou na hora. Resolvi descontrair.

Eu: Comprei na Rua 23. Naquelas lojas US Army, que vendem artigos para caça e pesca, sabe?
Ele: Sim, sei.

Senti que seria melhor continuar uma conversa do que ignorá-lo. Então, disse a ele que também havia gostado das botas que ele estava usando. Eram daquelas do tipo que o exército americano usa no Iraque: cano alto, cor de areia e cadarços trançados.

Ele: Você deve estar brincando. Tenho essas botas há anos.
Eu: Botas velhas são ótimas. Por estarem mais acostumadas com os pés, são mais confortáveis.
Ele: Mas eu gosto de botas novas. Mas é verdade, uso bastante até ficarem velhas e mais confortáveis.
Eu: Sim, entendo.

E esse papo de bêbado para delegado seguia firme. O trem R já estava em Brooklyn, mas ainda faltavam umas três estações para eu descer. Fiquei na dúvida se deveria descer na minha estação. Senti receio de que ele poderia me seguir, sei lá. Ficamos em silêncio por alguns instantes até ouvir o auto-falante.

O maquinista: Bay Ridge, next stop.

Fiquei de pé num instinto. Coloquei minha mochila nas costas e perguntei onde ele costuma descer. Com um olhar de quem não gostou de ficar sozinho, o cara me olhou com aqueles olhos esbugalhados, de baixo para cima.

Ele (com a cabeça jogada para trás, repousada no encosto do banco de plástico do trem): Vou até Coney Island (a última e obscura estação do trem R). Depois eu volto para Manhattan. Depois retorno para Coney Island. Depois eu volto para Manhattan...

Desci apressado do trem, ainda ouvindo-o repetir o seu deprimente itinerário noturno.

PARTE 10 - Eu, Doro e a cartomante

Depois do trabalho, à noite, procurava gastar minhas gorjetas com pequenos luxos. Algumas cervejas, um show, um passeio pelo Village, um cinema. Dorothy fazia parte desses microplanos. Freqüentar os bares do Village era o nosso programa favorito. É o melhor bairro do mundo. Mesmo sem conhecer todos os bairros do planeta, arrisco a dizer isso. Na real, na real, cada um escolhe os seus próprios mundos. Gosto do Village porque é um lugar aberto, diversificado, artístico, cênico, musical, democrático, literário, agitado, antigo, moderno e, acima de tudo, simples.

Dorothy era uma pessoa encantadora. Bancária, trabalhava em casa produzindo relatórios imensos sobre mercado, finanças e outros temas ligados à área dos números, com a qual nunca me dei bem. Ela tentava me explicar o funcionamento de aplicações em bolsa. Confesso que fiz esforço para compreender, mas não adiantou. Apesar de trabalhar em casa, as tarefas do banco deixavam Dorothy bastante estressada. Por isso, procurava chegar em casa, tomar um banho e sair para buscá-la. Em geral, não escapávamos de uma pizza. Tínhamos um relacionamento tranqüilo e carinhoso. Amor, amor, não tinha. Mas era legal.

Depois de uma bela calabresa numa noite de sexta-feira (nós não trabalhávamos nos finais de semana), caminhávamos pela Prince Street em direção a um bar na Rua 14. Uma luz forte e cor-de-rosa chamou a atenção de Dorothy.

Ela: Espere. É uma casa mística! Vamos falar com a cartomante?
Eu: Dorothy, vamos para o bar. Não acredito em cartomantes. Você acredita?
Ela: Claro que não. Mas também não duvido.

Do lado direito da entrada da porta uma vitrine vertical exibia uma pirâmide de cristal com um olho dentro. Do outro lado, a placa: “Conheça seu futuro”. Entramos. Uma cortina de pedrinhas separava a recepção da única sala do lugar. No hall, uma mulher recepcionava os clientes. O ambiente era meio escuro, em tom vermelho, alaranjado.

A recepcionista: Olá. Posso ajudá-los?

Antes de abrirmos a boca, uma voz feminina soou firme do outro lado da cortina de pedrinhas.

A cartomante: Peça para o estrangeiro entrar.

Até que alguém provasse o contrário, o único estrangeiro por ali era eu. Dorothy, com uma cara de quem diz ‘você ouviu o que eu ouvi?’, apertou meu braço e me arrastou sala adentro. A mulher branca usava um turbante amarelo, cravejado de pedras. Os olhos claros eram realçados pelo contorno negro do rímel, cujo traço oblíquo passava da linha dos cílios e subia até quase às sobrancelhas. Diante dela, uma mesa retangular, pequena, coberta por um feltro vermelho, no qual repousavam peças orientais, cristais e cartas.

A cartomante: Sentem-se.

Sentamos nas duas cadeiras à frente da mesa. Estava meio assustado. Não pela figura estranha da cartomante, mas por ela ter chamado o estrangeiro. Fiquei grilado sobre como ela sacou que eu era estrangeiro se eu não disse uma única palavra quando entrei. Ela saiu logo falando comigo, como se Dorothy não estivesse ali. Mas não falava as frases completas. Muitas vezes sem verbos.

A cartomante: Forasteiro feliz na cidade. Forasteiro trabalha e é feliz com menina ruiva.

Eu e Dorothy nos olhamos como quem concorda com tudo o que ela disse. Depois, falou uma seqüência de coisas sem importância: que eu seria um profissional bem-sucedido, que via riqueza no meu caminho, aquelas coisas. Tudo ia bem até ela lançar um olhar firme nos meus olhos e afirmar que não ficaria nos Estados Unidos.

A cartomante: Forasteiro muito feliz aqui. Mas forasteiro vai embora logo. Vai voltar de onde veio.

Pela primeira vez durante a ‘sessão’, protestei.

Eu: Não vou embora, não. Eu estou muito bem aqui. Ainda vou demorar muito tempo para voltar.
A cartomante (sacudindo a cabeça negativamente): Desculpe. Você vai logo, forasteiro.

Saímos dali com uma sensação de que havíamos rasgado dez dólares. Disse a Dorothy que a gente não deveria ter entrado, que as cartomantes dizem sempre as mesmas coisas. Ela também admitiu ter cometido a besteira de gastar dinheiro com uma pessoa que inventa coisas sobre as outras. Fomos para o bar, bebemos até tarde. Conversamos sobre tudo. O nosso trabalho, as notícias do dia, as bobagens do Teixeira, a contabilidade do banco, a aproximação de uma provável crise na bolsa de valores e os planos para o próximo feriado. Fomos para a casa dela, de onde só saí no domingo. O final de semana foi de chuva intensa, televisão e pipoca.

PARTE 11 - A dúvida entre ficar e partir

E assim ia minha vida em Nova York, numa rotina sossegada. Nada me faltava. Dinheiro, amigos, trabalho, mulher, divertimento. Mas volta e meia eu lembrava daquela maldita frase da cartomante. Lembrava e, imediatamente, meus pensamentos mandavam aquela mulher para bem longe. Ela e suas previsões idiotas e sem sentido. Era verão. Nova York ferve nesta época do ano. Minha casa era agradável. Tinha um pátio nos fundos, onde eu colocava as pernas para o ar e bebia cervejas geladas até o sono chegar. Meu quarto tinha ar-condicionado, mas o aparelho tinha estragado. Eu estava me amarrando para mandar consertar porque os serviços nos Estados Unidos são caríssimos. Decidi, então, que iria comprar um novo. Sairia mais barato. Mas não consegui dormir direito naquela noite.

Na manhã seguinte, liguei para Dorothy. Combinei de ir dormir na casa dela porque meu ar estava estragado e tinha passado uma noite péssima. Como sempre, cheguei à casa dela e fomos logo gastar minha gorjeta. Naquele dia havia conseguido uma boa grana com as entregas de sofá, quase 50 dólares. Fomos a uma cantina e nos deliciamos com uma massa maravilhosa. Voltamos quase desmaiados para casa. Ela mal conseguiu escovar os dentes. Despencou na cama. Eu ainda fui tomar banho – até hoje tenho a mania de tomar banho antes de dormir. Não sei se a ducha me fez despertar, só sei que não tinha jeito de dormir, mesmo com a temperatura civilizada do ar-condicionado. As sirenes das ambulâncias também não me deixavam em paz.

Levantei, acendi a luz da sala e fiquei olhando o movimento da rua pela janela. Do lado de fora do vidro, aquelas escadinhas do lado externo do prédio remeteram meus pensamentos ao quarto do Hotel Remington, quando desembarquei assustado em Nova York meses atrás. Diferentemente do meu primeiro dia na cidade dos meus sonhos, aquela noite não estava nevando. Ao contrário. Fazia calor. Ali, na sala da Dorothy, um novo filme passou pela minha cabeça.

O restaurante, os meus amigos do Remington, o YMCA, a loja de móveis, o warehouse, o Alfredo, o Teixeira, o caminhão, o Sérgio, a brasileira gostosa que fingiu ser americana, as gargalhadas que dei com meus amigos, as gorjetas, as mulheres que conheci em Nova York, as mulheres que adoraria ter conhecido e não as conheci, as noites nos bares, os shows que vi, minha casa em Bay Ridge, as viagens pelas estradas do Estado e Dorothy. Quanta coisa vivi para estar ali naquela sala, sem sono, espiando a rua enquanto minha namorada dormia tranqüilamente na peça ao lado. Chorei pela segunda vez nos Estados Unidos. Não chorei de tristeza nem de alegria. Chorei porque percebi que meu sonho de viver para sempre por lá corria o risco de virar realidade. Chorei porque naquele instante percebi que por mais que quisesse ficar, alguma coisa me puxava de volta para Porto Alegre. Havia chegado a hora de decidir: ficar ou partir? Dias depois, concluí que havia chegado a hora de me mandar.

* Estive outras vezes em Nova York nesses 20 anos. Mas não tive coragem de visitar a casa em que vivi, em Bay Ridge, e nunca mais falei com Dorothy, com o Alfredo ou o Teixeira. Converso seguidamente por email com Sérgio, que no verão de 2009 ficou uns dias na minha casa. Estou devendo uma visita a ele em Chicago. Qualquer dia desse, Sérgio. Qualquer dia desses.