segunda-feira, 24 de março de 2008

PARTE 10 - Eu, Doro e a cartomante

Depois do trabalho, à noite, procurava gastar minhas gorjetas com pequenos luxos. Algumas cervejas, um show, um passeio pelo Village, um cinema. Dorothy fazia parte desses microplanos. Freqüentar os bares do Village era o nosso programa favorito. É o melhor bairro do mundo. Mesmo sem conhecer todos os bairros do planeta, arrisco a dizer isso. Na real, na real, cada um escolhe os seus próprios mundos. Gosto do Village porque é um lugar aberto, diversificado, artístico, cênico, musical, democrático, literário, agitado, antigo, moderno e, acima de tudo, simples.

Dorothy era uma pessoa encantadora. Bancária, trabalhava em casa produzindo relatórios imensos sobre mercado, finanças e outros temas ligados à área dos números, com a qual nunca me dei bem. Ela tentava me explicar o funcionamento de aplicações em bolsa. Confesso que fiz esforço para compreender, mas não adiantou. Apesar de trabalhar em casa, as tarefas do banco deixavam Dorothy bastante estressada. Por isso, procurava chegar em casa, tomar um banho e sair para buscá-la. Em geral, não escapávamos de uma pizza. Tínhamos um relacionamento tranqüilo e carinhoso. Amor, amor, não tinha. Mas era legal.

Depois de uma bela calabresa numa noite de sexta-feira (nós não trabalhávamos nos finais de semana), caminhávamos pela Prince Street em direção a um bar na Rua 14. Uma luz forte e cor-de-rosa chamou a atenção de Dorothy.

Ela: Espere. É uma casa mística! Vamos falar com a cartomante?
Eu: Dorothy, vamos para o bar. Não acredito em cartomantes. Você acredita?
Ela: Claro que não. Mas também não duvido.

Do lado direito da entrada da porta uma vitrine vertical exibia uma pirâmide de cristal com um olho dentro. Do outro lado, a placa: “Conheça seu futuro”. Entramos. Uma cortina de pedrinhas separava a recepção da única sala do lugar. No hall, uma mulher recepcionava os clientes. O ambiente era meio escuro, em tom vermelho, alaranjado.

A recepcionista: Olá. Posso ajudá-los?

Antes de abrirmos a boca, uma voz feminina soou firme do outro lado da cortina de pedrinhas.

A cartomante: Peça para o estrangeiro entrar.

Até que alguém provasse o contrário, o único estrangeiro por ali era eu. Dorothy, com uma cara de quem diz ‘você ouviu o que eu ouvi?’, apertou meu braço e me arrastou sala adentro. A mulher branca usava um turbante amarelo, cravejado de pedras. Os olhos claros eram realçados pelo contorno negro do rímel, cujo traço oblíquo passava da linha dos cílios e subia até quase às sobrancelhas. Diante dela, uma mesa retangular, pequena, coberta por um feltro vermelho, no qual repousavam peças orientais, cristais e cartas.

A cartomante: Sentem-se.

Sentamos nas duas cadeiras à frente da mesa. Estava meio assustado. Não pela figura estranha da cartomante, mas por ela ter chamado o estrangeiro. Fiquei grilado sobre como ela sacou que eu era estrangeiro se eu não disse uma única palavra quando entrei. Ela saiu logo falando comigo, como se Dorothy não estivesse ali. Mas não falava as frases completas. Muitas vezes sem verbos.

A cartomante: Forasteiro feliz na cidade. Forasteiro trabalha e é feliz com menina ruiva.

Eu e Dorothy nos olhamos como quem concorda com tudo o que ela disse. Depois, falou uma seqüência de coisas sem importância: que eu seria um profissional bem-sucedido, que via riqueza no meu caminho, aquelas coisas. Tudo ia bem até ela lançar um olhar firme nos meus olhos e afirmar que não ficaria nos Estados Unidos.

A cartomante: Forasteiro muito feliz aqui. Mas forasteiro vai embora logo. Vai voltar de onde veio.

Pela primeira vez durante a ‘sessão’, protestei.

Eu: Não vou embora, não. Eu estou muito bem aqui. Ainda vou demorar muito tempo para voltar.
A cartomante (sacudindo a cabeça negativamente): Desculpe. Você vai logo, forasteiro.

Saímos dali com uma sensação de que havíamos rasgado dez dólares. Disse a Dorothy que a gente não deveria ter entrado, que as cartomantes dizem sempre as mesmas coisas. Ela também admitiu ter cometido a besteira de gastar dinheiro com uma pessoa que inventa coisas sobre as outras. Fomos para o bar, bebemos até tarde. Conversamos sobre tudo. O nosso trabalho, as notícias do dia, as bobagens do Teixeira, a contabilidade do banco, a aproximação de uma provável crise na bolsa de valores e os planos para o próximo feriado. Fomos para a casa dela, de onde só saí no domingo. O final de semana foi de chuva intensa, televisão e pipoca.

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